O dia em que me perdi no supermercado e outras histórias de horror

Anderson Jor
10 min readSep 17, 2021
Photo by Nathália Rosa on Unsplash

Oi.

Como estão as coisas?

Faz muito tempo. Por aqui, preciso te contar.

Tem um tempinho? Acho que é muita coisa, acho que não é nada.

Parece um pesadelo. Ela está presente, ela existe, eu a vejo, mas não existo mais. Eu morri. É como tenho me sentido. Morto.

Me lembro quando meu pai morreu, depois de todo o sofrimento que lhe abateu. As pessoas em conversas em volta do corpo, ele com algodões no nariz e um leve sorriso na boca suturada, as mãos cruzadas, coberto de flores. Eram lindas as mãos de meu pai, como são bonitas as minhas, com a diferença que as dele tinham unhas perfeitas, nunca roídas, diferente das que tenho.

Quando soube que ele partiu, senti um choque muito grande e liguei o automático para resolver tudo o que precisava. Não sei se sabes, mas foi tão forte esse meu senso burocrático, que me senti até culpado depois. Só consegui esboçar algum choro ao ver o caixão coberto de terra, já no momento final. Ainda assim aquele peso no peito foi moderado e, aos poucos, se tornou uma segunda natureza possível de sustentar. Até que um dia deixei de sentir e não faço a menor ideia se sumiu e ou se incorporou às minhas sombras.

Aconteceu algo parecido quando decidi acabar com meu primeiro e único casamento. Foi num impulso. E desde a minha saída de casa exaurido rumo a um quarto de hotel barato até o dia em que cancelei formalmente o compromisso em um cartório foi uma lenta e apavorante mistura de tensão e medo. Uma espécie de névoa entranhada no que eu sou, o tempo inteiro a me cercar.

Tinha medo de tudo. Medo de ser assassinado, roubado, de sofrer violências a mando dela, porque havia subvertido a ordem de abandonar uma mulher criada para casar. Era um fugido daquela ilha, afinal de contas. Tinha pavor de voltar àquela opressão doméstica e silenciosa.

Por muitos meses, morei nessa neblina, que culminou em uma crise, no dia em que não consegui me controlar e achei que morreria. Uma aflição tomou conta de mim e meu corpo não me respondia. O coração disparado, as pernas sem forças, o ar me faltava. Parei numa urgência e desmaiei no soro. Tive um sono profundo de uma hora e meia e acordei sem saber direito onde estava, sozinho, com as agulhas na veia e uma paz, que não era paz, mas um relaxamento brutal de quem estava há dias no fogo cruzado de uma guerra que, finalmente, havia cessado.

Agora, nesse pesadelo atual, tenho me sentido em choque. Me parece que esse novo episódio tem um pouco dessas duas vivências. É como se essa mescla de sentimentos extremos, agora com os polos invertidos — não me tornei um autômato nem quis fugir de um jaula, que fosse me anular e me consumir — me tragasse toda a energia. As forças, que eu julguei ter, as que me exibia por elas, sumiram nesse momento. Tenho me sentido paralisado e minúsculo. Logo eu um mastodonte.

De dia, tenho feito o básico para manter a rotina, só o que é estritamente obrigatório e exige pouco da minha concentração. Estão de pernas pro ar minhas tarefas de trabalho e meus outros compromissos inadiáveis, hoje todos adiados. Mas também foda-se a produtividade, foda-se o capitalismo, os patrões, o sistema, meu chefe e, se não for possível escapar, que eu me foda mais ainda do que já me fodi.

Não tenho mais apetite e sinto como se fosse um fardo muito pesado seguir, como nunca havia sentido. É a primeira vez que me sinto fraco física, psicológica e emocionalmente diante de um problema. Perdi peso e meus olhos estão decaídos e estagnados, minhas olheiras dependuradas, minhas mãos trêmulas, meus passos vacilantes.

As noites são piores.

A ausência física dela é uma pressão imensa e a imagem dela se repete de tantos jeitos a reprisar nossa vida curta juntos, que sinto vertigem. Não como metáfora, a visão se altera e o mundo gira, de verdade. Meu estômago tem estado comprimido, o que me causa uma espécie de náusea intermitente, um desconforto no corpo que me impede de relaxar e dormir. Às vezes, esse enjoo se aloja no meio do peito e até trava os músculos de minhas pernas. Acordo assustado à procura e encontro vários nadas.

Pra tentar escapar, tenho usado o telefone com mais frequência. Mensagens para ninguém, vídeos inúteis, pornografia, novos aplicativos. As redes são um imenso vazio, no entanto ainda é o que consegue minimamente me distrair e me manter longe da realidade nauseante a que estou submetido.

Filmes, músicas e livros foram roubados do meu cotidiano. Não consigo manter a atenção e, quando mantenho, me faz mal o que vejo, leio ou escuto, porque algo me remete a nós dois, ela e eu. E tudo se torna insuportável e me mantém no abismo em que estou.

Meu choro está na garganta o tempo inteiro, embora não tenha costume de chorar. Chorei poucas vezes na vida — nem por meu pai nem pelo fim do casamento, por exemplo — não que me orgulhe desse traço que mais parece uma opressão sobre mim, um homem comum apartado do que é exprimir o que sente.

Só que não chorar se tornou, agora, um problema, porque o pranto não desce, não se realiza, não se desfaz esse nó. Às vezes, ele escapa um pouquinho e lacrimejo. Nas horas mais impróprias, na frente de pessoas que não devem nem precisam ver minhas fraquezas. Ou pelo menos não quero que vejam tampouco pensem que preciso delas.

Como no dia em que em que um colega de trabalho chegou apavorado porque a esposa dele teve um surto. Os olhos dele estavam em outro mundo, provavelmente na imagem da mulher que ele amava. Aquilo me furou como uma faca cega e enferrujada. Não consegui segurar e acho que ele percebeu minhas a maré revolta nascida nos meus olhos e meu sufoco ao tentar contê-las.

Há dias de apatias apenas, mas há dias de extremo desespero, de angústia, de agonia, de mortificação. Penso que não vou mais vê-la nunca mais, nunca mais vou ouvi-la, nunca mais vou tocá-la e, o pior de tudo, que nunca mais vamos conviver, nunca mais vamos conversar, nunca mais vamos nos entender. Como meu pai morto ouvia as conversas sem ninguém saber dentro do esquife, eu também seguirei ignorado por ela viva, minha vida, e livre de mim para sempre.

As pessoas percebem meu abatimento e me sinto muito ridículo. Ao mesmo tempo, quero ser flagrado em meu sofrimento e quero escondê-lo de todos, como se fosse uma vergonha brutal. Me sinto humanamente patético, porque sei que essa aflição já deveria ter cessado por ter entendido que as coisas são como são e são definitivas. Não há saídas pra mim, não há refúgio, não há consolo, o tempo não para. Estou no escuro embaixo da tempestade pela primeira vez em mais de 40 anos. E às vezes as pessoas me encontram nesse lugar e, cientes da resposta, ainda perguntam se estou bem.

Talvez gere a ela algum orgulho o meu estado. Sou um homem feito e até aqui geria meus sentimentos com alguma habilidade. Estive seguro e senhor de mim na maioria das situações. Se era pra me ferir, me ver derrotado e sentir o gosto dessa queda e do meu sangue, ela pode se dar por satisfeita. Dê a ela o pódio. Ela venceu e acertou em cheio um exemplar grande e vistoso, invicto até dia desses, que se julgou imune tantas vezes a esses problemas menores.

Mas a quem eu quero enganar?

Nem sobre isso tenho qualquer certeza. Não há nada que eu veja além de um imenso muro que agora nos divide entre o lado que estou e o vácuo de um assunto enterrado. Me perco messa corda bamba do desprezo, onde ninguém cai pra lado algum e segue invisível.

Nos últimos anos, minhas escolhas, minhas viagens, meu modo de vida e minhas decepções reduziram muito meu círculo de amigos. Ficaram muito poucos e hoje percebo que tenho abertura nenhuma para contar o que me corrói a qualquer um deles, desses que permaneceram.

Não me sinto à vontade para abrir meu interior espedaçado e revelar que estou morto, que estou esgotado, exaurido por causa de uma mulher que sequer me mostrou aos seus e não aceitou meus defeitos nem meus erros quando eles se apresentaram de maneira mais dramática. Alguém a quem sou um estranho hoje. Talvez pior: alguém que ela conhece demais.

Não gostaria de ser julgado e não acho que há mais espaço para um velho sofrer de desilusões. Esse tempo se perdeu nos vinte anos, época que já nem me lembro mais. Me condenei a padecer calado, como alguém que cometeu um pecado e tem vergonha de confessá-lo, mas aceita a punição, desce ao inferno e abraça o diabo como a um irmão. Não tenho forças para pedir a eles, meus velhos amigos, qualquer amparo, daí escrevo a ti, que talvez me socorra, quem sabe, caso esteja vivo em algum lugar por aí.

Por falar em punição, palavra forte, me vejo punido. Ela me disse que não na última vez que nos odiamos em insultos. Ao mesmo tempo em que revelou que, se isso ou aquilo não tivesse sido dito, ainda permaneceria. No final das contas, foram meus últimos atos que decidiram o final do enredo nessa prosa previsível.

Nada do que eu disse posteriormente foi levado mais em consideração depois dos tais pecados mortais. Pedi perdão por todos eles, um a um. E, se eu estivesse ao lado de Cristo e cresse na santidade dele e contasse toda a minha dor e meu arrependimento pelo que fiz, ele sentiria minha verdade e me perdoaria, perceberia no meu abatimento e nas minhas palavras sobre o quanto aquele veneno me adoeceu e que eu jamais chegaria perto de outra dose de novo. Veria como estou purificado como um menino minutos antes da primeira comunhão.

Mas nem em deus acredito, infelizmente ou felizmente. Só gostaria de ter tido essa chance, de ter sido entendido, aceito e acolhido, queria ter voltado para casa, queria a redenção, queria o colo e amor de quem eu feri, ingênuo que eu sou.

Não estou mais preso nessa ilusão de que um dia ela olhe pro que nos aconteceu e deixe de remontar momentos ruins e juntar àquele episódio derradeiro para sustentar a decisão dela. Ainda assim, como um teimoso patológico, vivo como quem espera uma porta se abrir, ainda que saiba que está trancada a chumbo para sempre.

Tenho falado comigo mesmo, tentado me convencer: calma, homem, a vida é isto, outras tantas portas se fecharam, outras tantas derrotas já aconteceram, você está vivo e vai permanecer, enfrente, em frente, levante-se. Eu tenho me respondido, não tente me convencer de que ela não é o amor da minha vida, não tente reduzir absolutamente nada, não tente me dizer que o que vivi não merece cada lamento, não tente me convencer a desistir; tudo passa, eu sei, mas só passa se a gente deixar que a corrente da vida leve o que a gente sente.

É um duelo feroz, uma briga de foice no escuro, e eu tenho perdido todos os dias.

Desculpe, meu amigo, por te procurar — sei que hoje encontraria, ninguém mais se perde no sentido literal da coisa — e não confiar numa conversa olho no olho sobre essas questões; me perdoe a carta que te chega nesse papel mofado e úmido, fedido a água e sal, exalado de maus pensamentos, apodrecido na raiz, cheio dessa morte fajuta, infinda, antipática.

Me perdoe a carta propriamente dita. É um excesso, uma anacronice, eu sei. Às vezes, tenho disso, não é sempre. Postá-la nos correios tem o mesmo valor de mandar a mensagem em uma garrafa atirada ao mar. Sei que é a desesperança materializada. Só que a vida endurece a gente ao ponto do amor se atravessar como uma espinha de peixe na goela, precisa ser vomitado, mesmo que seja nessa incerteza de que alguém me ouça.

Esta carta, essa dúvida, essas palavras sem rumo, não são falta de amizade entre nós, meu caro. É que perdi o jeito com o tempo e esse distanciamento nosso que começou há tanto tempo que não me lembro o motivo real ou sequer houve razão, embora saiba que sou uma pessoa horrível e posso ter sido o responsável por ele. Me desculpe, mas não lembro.

Me recordo de nós dois sentados, tu e eu, no meio fio da nossa rua nas madrugadas de lua nova, quando isso ainda era possível, a sonhar e chorar os amores que nem tinham acontecido, mas que já doíam como uma unha encravada cheia de pus. Falávamos por horas, às vezes, até o sol aparecer e percebermos que perdemos não só as oportunidades de amar, mas também a noite inteira. E ríamos um do outro quando deveríamos ter aprendido a chorar e nos preparar para nos consolar sozinhos, cada qual no seu canto. Nem tu nem eu quisemos ensinar esse caminho e íamos embora sempre sem aprender.

Daqui te escrevo exausto desse fardo, meu amigo. É como se afogar em uma praia lotada e ninguém te ouvir; é como se perder no supermercado. Já aconteceu contigo? Me afogar, não, mas me perder, sim.

Ainda lembro de pensar sobre chorar ou não, em como chorar, se contido ou com todas as minhas forças, e olhar as pessoas absortas nas prateleiras, nos produtos, nos preços. Era como se eu não existisse ali. Passei muito tempo também entre as gôndolas, apavorado, como se aquilo nunca fosse acabar. Até que alguém chegou e segurou a minha mão.

Talvez, meu amigo, eu esteja agora nessa espera, hoje inútil, de que o resgate me tire desse poço e me torne visível de novo entre o detergente, as melancias, o molho de tomate e o conhaque. Por enquanto, caminho nesses corredores. Por enquanto, busco o melhor jeito de pedir socorro, muito perto da seção de bebidas.

Fui me lembrei de ti, justamente numa memória perdida sobre mais um amor malogrado teu, tu ali espedaçado e confuso num relato que consumiu o breu da noite. Tinha os olhos em brasa e ainda assim ria com os dentes enormes. Hoje, não faço ideia onde estejas, se não mudou desse endereço, se encontrou o amor, não aquele, qualquer um, porque qualquer já nos serve. Queria voltar onde nós nos socorríamos, como bons e amadores ouvintes.

Sei que é tarde e hoje somos homens tão diferentes desse tempo, envelhecidos e cheio de cacos. Mas, se possível, corra para onde estou. Não me tome por dramático ou oportunista, nem pueril. Estou cansado de ouvir que gente de pedra, feito eu, está livre de qualquer ferida. Nem de pedra sou, nem estou imune a qualquer dor.

Preciso de novo sentar no meio fio da rua que não é mais nossa, encarar as estrelas na escuridão e contar sobre o que me aconteceu. Só não creia que dessa vez vou rir no final, porque se passaram tantos anos, vi tanta coisa e tropecei em tantas sarjetas e, por tudo isso, não vai acontecer.

Não tão cedo.

Saudações,

A.

Vá ouvir Overjoyed.

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Anderson Jor

Escritor e jornalista nas horas pagas. Escrevo e falo de ordinárias desimportâncias.